A eutanásia e o Direito à morte

Recentemente um tema polêmico no âmbito jurídico e médico, mas principalmente no âmbito moral voltou à tona: a questão da necessidade, ou não, do prolongamento da vida daqueles cujo estado de saúde é terminal e irreversível.

A sociedade foi surpreendida com a séria notícia de que a médica Virgínia Helena Soares de Souza está sendo acusada de matar pacientes em estado grave na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Geral do Hospital Evangélico, o segundo maior de Curitiba (PR). Segundo o Ministério Público do Paraná, a médica foi acusada de desligar aparelhos de doentes em estado terminal sob o pretexto de liberar vagas na UTI que, segundo ela, estaria “entulhada”.

A triste notícia nos leva a refletir sobre a eutanásia. E na sua esteira surgem também a distanásia e a ortotanásia. A eutanásia é chamada de abreviação da morte e ocorre, por exemplo, quando o médico desliga os aparelhos de uma pessoa que está em estado vegetativo, dependendo daqueles aparelhos para viver.

A distanásia, por sua vez, é a o adiamento da morte e acontece quando, por exemplo, o médico ministra ao paciente todas as drogas disponíveis, bem como utiliza toda a tecnologia disponível para prolongar a vida e/ou atrasar a morte, muitas vezes lhe propiciando sofrimentos desnecessários.

Por derradeiro, a ortotanásia é um meio termo entre a eutanásia e distanásia, também conhecida por morte natural com o mínimo de sofrimento. Dá-se quando, por exemplo, o médico trata o paciente a fim de evitar-lhe sofrimentos mas, em casos terminais, não utiliza artifícios tecnológicos para atrasar a morte do paciente.

Nem todas essas práticas são expressamente aceitas, proibidas ou mesmo regulamentadas pelos órgãos competentes (Conselho Federal de Medicina, Congresso Nacional, etc.). Há diversas determinações sobre o assunto e, visando suprir, ainda que parcialmente, essa lacuna, foi que o CFM editou as Resoluções nº 1805 e 1995.

A resolução nº 1805 do CMF dispõe que: “Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.”

Todavia, essa resolução foi objeto de questionamento pelo Ministério Público Federal, que propôs Ação Civil Pública visando suspender os efeitos da mesma, sob o argumento de que o referido ato normativo feriria o ordenamento jurídico pátrio. Inicialmente, o juiz responsável pelo caso acolheu a tese da promotoria e suspendeu, temporariamente, os efeitos da resolução. No entanto, ao final da ação, o juiz reviu sua posição anterior e julgou válida a resolução do CFM que até hoje permanece válida.

Já a resolução nº 1995 tratou de regulamentar o denominado testamento vital, isto é, uma diretiva antecipada de vontade consistente no registro do desejo do paciente em um documento, que dá suporte legal e ético para o cumprimento da orientação, seja no sentido de manter, seja no sentido de dispensar eventual tratamento inócuo. Não obstante ao teor das citadas resoluções, o Código de Ética Médica também aborda o tema é dispõe que é vedado ao médico “utilizar, em qualquer caso, meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal”.

De outra vertente, atualmente nossas Leis não cuidam dessas situações de maneira clara e objetiva. Numa primeira análise, somente a eutanásia configuraria crime. No entanto, não há uma previsão específica para essa conduta, de modo que incidiria a regra geral do artigo 121 do Código Penal com uma causa de diminuição da pena, prevista em seu § 1º: “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.”

Como se vê, aquele que, visando cessar o sofrimento de determinado paciente cujo estado de saúde é irreversível (relevante valor moral), responderia pelo crime de homicídio, mas com uma pena reduzida.

No entanto, o atual anteprojeto para o novo Código Penal tratou de cuidar com mais atenção essa delicada questão, dedicando-lhe um artigo específico, que se for aprovado pelo Congresso Nacional, a eutanásia, via de regra, será considerada como crime. Todavia, em determinados casos, o juiz poderá deixar de aplicar a pena quando, além do parentesco, verificar laços estreitos de afeição entre aquele o agente e o paciente.

Para que a ortotanásia também não configure crime, o projeto de lei exige que a irreversibilidade e a gravidade da doença deverão ser certificadas por dois médicos, bem como deverá haver consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

Todavia, , o tema em questão vai além de uma mera regulamentação de conduta, seja dos médicos, seja dos pacientes, pois cuida do direito de todos a uma morte digna e sem sofrimento.

A República Federativa do Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana. Disso conclui-se que todo ser humano tem direito a ter uma vida digna, inclusive no momento de seu término, ou seja, na morte. Em pacientes terminais cuja doença esteja em situação irreversível, a dignidade consiste no controle da dor e de outros sintomas indesejáveis e desconfortáveis ao paciente. Dessa forma, os cuidados visando o bem-estar do ser humano passam a ser a prioridade, e não a luta contra algo que, inevitavelmente, não se tem mais condições de combater – no caso, a doença e o fim da vida.

Assim, o foco deste tema, de suma relevância, deve ser sempre o ser humano. E justamente por isso, os profissionais envolvidos com o paciente, que lutam diariamente para salvar vidas, devem se conscientizar de que a morte é um evento inevitável a todo ser que vive. De modo que, constatada a irreversibilidade da doença, o diálogo sincero e sensato entre os envolvidos é muito importante para preservar a dignidade daquele que está mais próximo da morte.

No entanto, vale ressaltar, a decisão final sobre manter ou não um tratamento quando o paciente já não reúne mais condições de reversão em seu quadro clínico, deve ficar sempre nas mãos do próprio paciente e, somente na sua impossibilidade de decidir, caberá a família essa importante decisão.

* Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP) e Presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde – [email protected]

* Jorge Cespedes é advogado do escritório Sfranco Consultoria, especializado em Direito Médico e da Saúde – [email protected]

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