Fraudes contra saúde: crime quase perfeito

Por: Sandra Franco*

É consenso entre pessoas civilizadas o repúdio às fraudes em sistemas de saúde. Não obstante, em várias partes do mundo, noticiam-se indícios ou a comprovação da nefasta prática de desvio de verbas, em especial, públicas. Buscar as causas desses desvios exige investigação hercúlea: a depender da estrutura administrativa de cada país, do poder do Estado, da legislação aplicável para coibir e punir o uso indevido do dinheiro destinado a melhorar a saúde da população.

Segundo notícia publicada no jornal Folha de S.Paulo, “fraudes globais em sistemas de

saúde atingem anualmente US$ 800 bilhões e já são cem vezes maiores do que os crimes cometidos contra sistemas financeiros”. Ilícitos como a falsificação de recibos de consultas, exames e cirurgias são os mais cometidos. Na mesma lista, há lugar para o superfaturamento de procedimentos hospitalares, adulterações cometidas por médicos e enfermeiros, que declaram ter usado equipamentos, materiais ou medicamentos, para os quais serão solicitados reembolsos seja pelas operadoras, seja pelo sistema público de saúde.

No contexto nacional, na cidade de Sorocaba, interior de São Paulo, causou espanto a notícia de que dezenas de médicos estavam sob investigação do Ministério Público, pela suspeita de fraude. Médicos são acusados de receber por plantões em que não compareceram. Prática frequente em hospitais públicos de várias cidades em todo país, já que os profissionais preferem trabalhar em seus consultórios ou em hospitais privados, pois os rendimentos serão maiores.

Em outra cidade do interior de São Paulo, Taubaté, estima-se que possíveis fraudes em licitações para fornecimento de medicamentos tenham provocado um prejuízo entre R$ 3 a 7 milhões aos cofres públicos. O Ministério Público investiga o recebimento pelo prefeito e pela primeira-dama de propina correspondente a 10% do valor das notas fiscais emitidas por uma empresa fornecedora de remédios.

A se continuar com a demonstração de recentes inquéritos ou ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, em vários Estados, cita-se o exemplo da pequena cidade de São José de Mipibu, no Rio Grande do Norte. Na cidade de 40 mil habitantes, há suspeita de que os médicos não cumprem sua jornada de trabalho, ocasionando deficiência no atendimento à população.

O Tribunal de Contas da União, ao realizar uma auditoria no mês de julho, constatou o desvio de R$ 14 milhões dos cofres públicos, em razão de fraudes ocorridas em Fortaleza (CE), Aparecida de Goiânia (GO), Belém (PA), Recife (PE) e Campina Grande (PB). Contabilizaram-se nove mil casos de internações e cirurgias pagas pelo governo, mas que teriam sido realizadas em pacientes depois de mortos.

Há iniciativas que poderiam ser aplicadas em nosso país para se descobrir com mais rapidez esquemas para o desvio de recursos da saúde. Nos EUA, foi criado o National Health Care Anti Fraud Association. O site desta associação apresenta de forma clara os prejuízos que as fraudes no sistema de saúde podem provocar de forma direta ou indireta. Um diagnóstico falso para justificar exames e cirurgias desnecessárias, a

declaração de um procedimento com cobertura pelo seguro quando há execução real de outro não coberto (meramente estético), ou seja, cada ato fraudulento ocasionará, no mínimo, a elevação do prêmio no caso dos seguros-saúde (em razão do princípio do mutualismo pelo aumento de gastos).

Além de iniciativas privadas, o Congresso dos EUA aprovou a lei federal Health Insurance Portability and Accountability Act (HIPAA), de 1996, pela qual se considera as fraudes envolvendo cuidados de saúde como crime federal, com pena de até 10 anos, além de sanções financeiras significativas.

A Rede Europeia de Combate a Fraude e a Corrupção no setor da Saúde indicou Portugal, entre os seus membros, como o país mais lesado por fraudes, cujos agentes são doentes, médicos, farmacêuticos, laboratórios e instituições que prestam cuidados de saúde, perdendo 839 milhões de euros por ano.

No Brasil, o Portal da Transparência do Governo Federal foi criado por iniciativa da Controladoria-Geral da União (CGU), em 2004, com o escopo de aumentar a transparência da gestão pública, como forma de o cidadão acompanhar os gastos com o dinheiro público e fiscalizar. No entanto, tais dados – de conhecimento público – nem sempre correspondem ao gasto real, como apontam os casos que pululam nos noticiários.

Vale dizer que o setor público possui regras rígidas para contratação de profissionais, bem como para compras de qualquer tipo de materiais, equipamentos, remédios. Há pessoas, porém, que se especializam em criar aparentes verdades, as quais quando analisadas em relatórios de prestação de contas são verossímeis. Porém, se auditadas, fiscalizadas in loco, poderão revelar situações inexistentes. É tão rentável que há quadrilhas, antes voltadas para o tráfico de drogas, que atuam na saúde.

Assim, é imprescindível um aparato mais eficaz na fiscalização e no controle dos gastos na área da saúde, de forma que a fiscalização não se dê por mera amostragem, pois a impunidade é um facilitador.

A fraude, particularmente no serviço público, é sedutora. Isso porque é possível apropriar-se de recursos sem “dono” específico (embora seja de milhões de pessoas), sem a necessidade de usar violência contra aquele que detém os recursos (embora milhões de pessoas sejam violentadas em sua dignidade ao não poderem ter melhores serviços de saúde), e o risco de sofrer uma punição rigorosa é bastante pequeno. É como ter um lago, limpo e cristalino para se refrescar, mesmo que não saiba se há permissão do “dono”: quem se preocupa ao mergulhar?

* Sandra Franco é consultora jurídica do Vale do Paraíba (SP) especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico Hospitalar da OAB/SP e Presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde – [email protected]

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