Família de aluguel

Todo cidadão tem direito à procriação. De acordo com a Constituição Federal, não importa a raça, o credo, a classe social, tampouco a preferência sexual. O assunto é retomado na novela Amor à Vida, na qual um casal de homossexuais pretende ter filho. Como se trata de homens será necessário recorrer à chamada cessão temporária do útero ou “barriga de aluguel”.

A questão da saúde reprodutiva está disposta na Constituição Federal, especificamente no artigo 226, §7º. Igualmente, prevê o Código Civil, em seu artigo 1565, §2º: “O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas”.

Também se dedica à normatização do planejamento familiar a Lei nº 9.263/1996. Nesse sentido, a Reprodução Humana Assistida é lícita e deve ser entendida pelo Estado e pela sociedade como exercício de dois direitos fundamentais: saúde e planejamento familiar. Conhecida também por “maternidade substitutiva” ou “útero de substituição”, a barriga de aluguel é um procedimento em que uma mulher engravida, fazendo o papel de “mãe substituta”, dispondo-se a gerar o embrião, em razão da infertilidade de outra mulher e, como no caso ficcional, para gerar um filho para casais homoafetivos.

Quando se trata de reprodução assistida, o dispositivo norteador para os médicos é uma resolução publicada recentemente pelo CFM de n° 2.013/2013, a qual em seu texto utiliza os termos “Gestação de substituição” ou “doação temporária do útero”. Pela denominação técnica, já se afasta a possibilidade de que haja qualquer pagamento pela utilização de útero alheio para a gestação. No caso da novela, a prática indicada seria considerada, em tese, antiética já que a candidata à gestante é uma personagem médica e a Resolução do CFM tem imperativo sobre a classe, uma vez que regulamenta essa profissão.

A mulher que “aluga” seu útero, em não sendo médica, não está obrigada a seguir essa regulamentação. Aplicando-se essa norma à narrativa novelesca, a personagem, na vida real, poderia responder a uma sindicância e possivelmente a Processo Ético Disciplinar perante seu Conselho Regional de Medicina (CRM). Para além da questão ética, pode-se fazer um raciocínio jurídico simples para se afirmar que a cessão do útero poderia ser tratada como crime, ao avaliarmos o disposto na Lei 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. Em seu artigo 9º, a lei apresenta que é permitido à pessoa juridicamente capaz, dispor gratuitamente de tecidos, órgãos, parte do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos e transplantes com a exigência de autorização judicial.

O descumprimento desse imperativo pode sujeitar o médico da paciente, a mulher que “aluga” o útero e o casal favorecido ao disposto no art. 15 da Lei 9434/97, parágrafo único:

“Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano:

Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.

Parágrafo único: Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação”.

É certo que a gestação de substituição não mutila a mulher (embora possa haver o risco de complicações na gravidez que levem à retirada do útero) e também o útero não e’ doado para uma receptora. Vale ressaltar também que a substituição do útero envolve sim a comunicação entre a mulher e o feto, por exemplo, por meio do líquido amniótico. Não se estaria doando nutrientes e partes do corpo (ainda que sejam células) ao filho de outrem? É de se refletir.

Apesar de a Constituição Federal defender a formação da família e, portanto, a reprodução, a medicina chegou tão longe e se tornou tão poderosa, que foi preciso impor determinadas regras para suas práticas. Ainda que o planejamento familiar seja um direito de todos os brasileiros, não se trata de um direito absoluto. Para exercê-lo, faz-se necessário observar limites éticos e legais existentes. Desta forma, outra afronta as disposições emanadas pelo Conselho Federal de Medicina reside no fato de a personagem médica não preenche o requisito de pertencer a família de um dos parceiros num parentesco consanguíneo até o quarto grau.

É verdade que se houver autorização do CRM, justificando a opção por uma mulher doadora que não apresenta parentesco com os pais/parceiros, não incorrerá o médico, responsável pelo tratamento de reprodução assistida, em qualquer infração ética. Impreterivelmente deverá ser realizado um contrato entre os pais/parceiros e a doadora temporária do útero (que recebeu o embrião em seu útero e deu à luz), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança e todas as possíveis consequências desta gestação.

Existem países da Europa e África em que o procedimento de “barriga de aluguel” permite legalmente a remuneração da doadora do útero. Há notícias de que brasileiras e indianas vão para os Estados Unidos, por exemplo, a fim de venderem seus óvulos e de “alugarem” seu útero. Aliás, mulheres de países pobres se disponibilizam para esta tarefa. Outros países que a cessão é onerosa são África do Sul, Austrália, Grécia, Índia, Israel, Rússia e Canadá.

Vale ressaltar também que no Brasil não há uma legislação específica para regulamentar a paternidade e a maternidade nas relações homoafetivas, embora o STF já tenha reconhecido como entidade familiar a união estável homoafetiva. No caso de o casal decidir ter filhos, por analogia, aplicam-se as mesmas normas do ordenamento jurídico e administrativo que serviriam aos casais heterossexuais. A sociedade mudou e o Direito não pode ser um obstáculo para o cumprimento de um desejo de ser mãe e de ser pai, em nome do princípio da dignidade humana.

*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico Hospitalar da OAB/SJC, presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde e vice-presidente na Associação Latino Americana de Direito Médico – [email protected]

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