O parto, a autonomia do paciente e o direito à vida

Uma polêmica decisão da Justiça do Rio Grande Sul do Sul provocou um amplo debate entre os profissionais da Medicina sobre a autonomia do paciente e o direito à vida. Aliás, a celeuma alcançou a sociedade, a qual se posiciona julgando os envolvidos, algo como acontece diante de um capítulo em uma novela das oito.

O fato ocorreu no hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres, no Litoral Norte gaúcho. A gestante, 29 anos e duas cesarianas, queria que o bebê nascesse de parto normal, mas a equipe médica entendeu que o procedimento colocaria em risco a vida dela e do bebê. Contrariando a orientação médica, a paciente foi para sua casa. No entanto, a gestante foi reconduzida ao hospital por um oficial de Justiça acompanhada por policiais, em cumprimento a uma ordem judicial.
As opiniões oscilam entre a garantia do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade versus a garantia do direito à vida do nascituro. Como preservar a autonomia da paciente ao optar por um ou outro procedimento, quando é iminente o risco de morte de outrem que é vulnerável, frágil e que nada pode escolher?

De certa forma, com o objetivo de exercer a Medicina guiada pelo princípio ético da beneficência, a equipe médica tomou uma atitude extremada: requerer ao Judiciário que obrigasse a gestante a realizar uma cesariana, afirmando ser a única forma de salvaguardar a vida. O pedido liminar na ação judicial foi realizado pelo promotor Octavio Noronha, do Ministério Público de Torres, após ser procurado pela equipe do hospital. Segundo o representante do Ministério Público, havia provas que apontavam para o risco de morte da mãe e do bebê. O magistrado acatou seus argumentos.

A cesariana deve ser um procedimento indicado pelo médico, quando o parto normal não se faz possível. No Brasil, é bastante comum, por uma série de fatores, a opção tanto da paciente quanto do médico assistente pela cirurgia. Importante esclarecer que não se pode obrigar qualquer pessoa a se submeter a um procedimento, levando-se em conta sua autonomia e sua dignidade. No entanto, o que o médico pode fazer ao se confrontar, por exemplo, com um paciente alcoólatra, ferido e que não permite ser tratado em caso de fratura exposta? Não deve ser ele forçado de alguma forma a fazer a necessária cirurgia?

Analogamente, as condições apresentadas pela gestante e pelo bebê no momento do parto determinavam que a melhor técnica era aquela que a paciente não desejava. Qual deve ser o protocolo médico em situações de aparente conflito ético e legal entre a necessidade e a autonomia? Quem poderia mediar e ajudar a resolver o problema?

A Constituição Federal garante a liberdade do cidadão. Aliás, a autonomia do paciente está entre os princípios da Medicina. No caso em destaque, em tese, o procedimento deveria ser realizado para garantir o direito do nascituro à vida e houve resistência imotivada da mãe, que exercia seu direito de escolha. Diante desse cenário, parece acertada a decisão judicial que considerou o direito do feto como princípio maior a ser observado, se considerado o disposto no artigo 2º do Código Civil – “embora sem personalidade civil, a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Já o artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) dispõe que “a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma nele contida (…) deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares”.

Na seara jurídica, partindo do pressuposto de que nenhum direito é absoluto, a doutrina e a jurisprudência apontam que ambos os direitos devem ser cotejados e colocados na balança da proporcionalidade. Assim, o direito de maior valor se sobreporá ao de menor valor, segundo o princípio da convivência harmônica das liberdades públicas. Do ponto de vista ético, também se aplica esse raciocínio. E, por se tratar de um conflito, não há o certo ou o errado; mas sim a escolha do princípio de maior valor.

Seja qual for o procedimento, a indicação ao paciente dependerá do entendimento do médico (ou de uma junta médica), observadas as práticas reconhecidamente aceitas e respeitadas as normas legais vigentes no país. Ainda assim, é dever do profissional, salvo em casos de urgência e emergência, informar ao paciente ou representante legal os motivos e os riscos da intervenção, de forma clara e objetiva. O paciente tem o chamado direito à informação garantido pelo Código de Ética, pelo Código de Defesa do Consumidor e aplicado pelo bom senso. Se mesmo informado dos riscos, ele decide não realizar determinado procedimento, toma para si parte da responsabilidade de tal ato, em tese.

O que trouxe maior desconforto às pessoas foi a presença de policias para fazer valer a ordem judicial no caso de RS. Há manifestações de grupo de mulheres que entendem havido um desrespeito aos direitos humanos. De fato, não é demais analisarmos essa decisão sob outro prisma. Se considerarmos que se tratava de uma mulher, gestante, capaz, com uma gravidez de risco, a medida extrema poderia, ao contrário do que se pretendia, causar um grande estresse na paciente e uma piora no quadro clínico da mãe e também do bebê. Supondo que a pressão arterial dessa gestante subisse, o fluxo de sangue para o bebê diminuiria e poderia ocorrer o descolamento a placenta. Por sua vez, o bebê entraria em sofrimento e, possivelmente, aspiraria mecônio. Um dessas consequências poderia até impedir a pretendida cirurgia.

A justificar a medida tomada, indica-se um dispositivo legal presente no ECA, em seu art. 10, inciso VIII: “a intervenção deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou o adolescente se encontram no momento em que a decisão é tomada”, ou seja, atribui-se à autoridade a competência de decidir como “será a intervenção”.

De outro lado, poderia se criticar a decisão com fundamento no art. 7º da Lei 8.080/90, que dispõe que devem ser observados os princípios presentes no art. 198 da Constituição no desenvolvimento das ações e serviços públicos de saúde que integram o Sistema Único de Saúde (SUS). O inciso III, em especial, aponta para a necessidade da “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral”. Nesse sentido, a intromissão do Estado, ainda que com escopo na beneficência, culminou na ruptura da autonomia dessa paciente gestante.

A Medicina é uma seara ainda muito complexa para o Direito. Mais uma vez, assistiu-se a um caso de Judicialização da saúde, como forma de solução de conflitos. No entanto, seria realmente necessário à equipe se socorrer de uma liminar? A relação médico e paciente está tão deteriorada a ponto de essa gestante não ter sido convencida pelos médicos à cesariana? A gestante aceitaria deixar seu filho morrer, se não fosse a intervenção do Estado? Ao que parece, a gestante não agiu corretamente, mas o mesmo se pode dizer dos médicos. Ao final, mãe e filho passam bem, obrigado!

* Sandra Franco é consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde, é presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), conselheira no Conselho Municipal de Saúde (COMUS) de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde – [email protected]

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