Planos de saúde e o dever de ressarcir o SUS

Sandra Franco*

Uma das grandes polêmicas do setor de saúde está no ressarcimento ao Sistema Único de Saúde (SUS) pelos planos de saúde. Este ressarcimento foi definido pela lei 9.656/98 que obriga as operadoras dos planos de saúde a pagarem por tudo o que for gasto pelo Estado quando um de seus beneficiários – um cliente do plano – for atendido em algum estabelecimento do SUS.

Em tese, tendo havido negativa ou não pelo plano de saúde, não importando a cobertura do contrato, se o portador de plano de saúde ou seguro saúde é atendido via SUS, o Estado poderá cobrar da operadora/seguradora tudo o que foi gasto no atendimento. Há duas correntes quanto ao ressarcimento ao SUS pelas operadoras.

Uma que entende tratar-se de um valor devido, uma vez que, em vários casos, as operadoras ao se furtarem em dar o atendimento, em especial em casos de alta complexidade e de emergência, transferem sua responsabilidade contratual e social para o Estado. Ocorre que a Lei 9656/98, no artigo 32, dispõe sobre a determinação de que os cofres públicos sejam ressarcidos pelas operadoras, quando prestadores conveniados ou contratados pelo SUS prestar o atendimento aos usuários daquele plano.

Embora por um viés distinto, não se pode deixar de lembrar que a saúde privada se beneficia do dinheiro público de várias formas. Uma delas é a própria atuação direta como prestadora de serviços aos entes públicos, quer como contratada pelo serviço público para realizar procedimentos não realizáveis pelo Estado, quer pelo fato de os próprios servidores públicos preferirem atendimento médico oferecido pelo serviço privado a fim de evitar a demora e baixa eficiência do SUS.

Oras, se é permitido em nosso país, que a saúde (um setor essencial) seja explorada de forma privada, seria incoerente não cobrar do setor privado por aqueles serviços prestados pelo sistema público a usuários dos planos de saúde. Parece ser, no mínimo, moral. O Estado tem como dever usar seus recursos para promover políticas públicas que possam atingir ao máximo possível de cidadãos, em especial aqueles que são financeiramente menos abastados.

Na verdade, políticas públicas servem a todos os cidadãos universalmente, sem distinção – assim, faz-se necessário aplicar os recursos do setor de saúde para este fim e não somente para fins assistencialistas.

Os recursos são arrecadados da sociedade e são finitos; no entanto, na área de saúde as tecnologias encarecem os atendimentos e requerem investimentos mais altos. Ao contrário do sistema privado que pode praticar a lei de mercado e aumentar o preço pela contraprestação dos serviços prestados, o Estado está quase sempre em déficit, pois não pode aumentar os impostos arrecadados diante do aumento de seus gastos, em qualquer área.

Quando um usuário de plano de saúde é atendido por um hospital da rede SUS – quer por sua excelência em serviços de alta complexidade, quer pela negativa de cobertura pela operadora, quer por se tratar de uma urgência ou emergência fora do âmbito territorial do plano; ou, porque o cidadão ao ser socorrido em um acidente teve seu atendimento inicial em hospital público – o Estado vê-se com a responsabilidade direta de assumir todos os custos de um atendimento (o SUS é um sistema universal), já previsto para ser suportado pelos planos de saúde. Essa previsão é calculada pela própria operadora, ao realizar seus cálculos atuariais para fixar as mensalidades.

Se o Plano de Saúde não gastou com o paciente, aumentou seu lucro, certo? Se considerarmos, que são 50 milhões de usuários dos planos de saúde, que, ao deixarem de ser atendidos pelos credenciados e buscarem um serviço público, proporcionam um ganho considerável para as operadoras.

De outro lado, não é inexpressiva a corrente que afirma haver a previsão na nossa Constituição Federal de que a saúde é dever do Estado de forma que não poderá haver distinção entre os cidadãos quando estes buscarem os serviços de saúde, não havendo qualquer irregularidade em ser depositada no Estado a responsabilidade financeira para qualquer um que busque atendimento. Evidente que, em linhas gerais, esse parece um raciocínio lógico-jurídico, afinal a saúde é direito fundamental e um direito público subjetivo. No entanto, seria justo?

A tese é de haver dupla cobrança do cidadão, afinal o Estado recolhe tributos com o escopo de devolver aos cidadãos os serviços essenciais e, mesmo assim, repassaria para as operadoras a cobrança por um serviço pelo qual, em tese já teria recebido. Vale registrar, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que essa tese não deveria prosperar, pela questão instransponível da existência de lei com tal previsão.

A ANS tem estrutura para realizar a cobrança dos planos de saúde com eficácia? A Resolução 185/2008 determina que a Diretoria de Desenvolvimento Setorial – DIDES será a responsável pela verificação da obrigação de ressarcimento ao SUS. Na verdade, há o direito de as operadoras impugnarem as indicações e os valores indicados pela DIDES, o que torna o procedimento administrativo mais “justo” e obviamente muito mais demorado. Além disso, o SUS tem controle de fato sobre todos os atendimentos que são prestados aos usuários dos planos de saúde?

Há previsão legal de penalidade para omissão de informações ou ainda para o caso de informações incorretas serem colocadas no sistema eletrônico; mas, quem fiscaliza esse sistema em um país do tamanho e complexidade do Brasil? Há condições de a ANS saber se cada atendimento de fato teria amparo contratual pelas operadoras (esse é um dos requisitos necessariamente analisados para que haja o reembolso)? Caso por caso?

Não parece se afigurar essa possibilidade no cenário atual. Na lei 9656, art. 32, § 2o, há disposição no sentido de que caberá a ANS a obrigação de disponibilizar às operadoras a discriminação dos procedimentos realizados para cada consumidor. Mas, se a ANS não tiver as informações de que necessita para gerar os relatórios ou se demorar a fazê-lo, não haverá a restituição dos valores ao Poder Público.

A regulamentação vigente para regulamentar o repasse dos valores está na Resolução Normativa 185/2008 da ANS. O site da Agência apresenta o longo caminho a se percorrer para finalmente ocorrer o reembolso ao SUS pelos atendimentos realizados a usuários dos planos de saúde. Começa por uma triagem através do cruzamento de dados do sistema de informações do SUS referentes a identificação de usuários com o Sistema de Informações de Beneficiários (SIB) da própria Agência.

Não obstante, o cartão SUS foi criado para ser o principal sistema de informação do Sistema – entretanto, o cartão não está implementado em todas as localidades com atendimento SUS? O sistema de informação ainda é falho. Ademais, nenhum beneficiário de plano de saúde poderá ter seu atendimento negado por parte dos prestadores de serviços caso não esteja de posse do Cartão Nacional de Saúde.

E não há uma campanha forte de esclarecimento aos usuários dos planos de saúde (por nenhum dos interessados) no sentido de que seja obrigatório o cadastramento no CNS. Por fim, em vários lugares o Cartão do SUS não foi ainda implementado, as anotações em prontuários são falhas e imprecisas, não se sabendo de fato quanto se gastou no SUS, de forma indevida.

O passo seguinte à triagem é justamente a identificação dos beneficiários dos planos de saúde atendidos no SUS – a ANS exclui os atendimentos sem cobertura contratual. O terceiro momento é a notificação das operadoras a respeito dos valores que devem ser ressarcidos, cujos parâmetros estão entre os valores cobrados pelo SUS e os cobrados pelas operadoras, segundo tabela específica, a qual também e’ fonte de discórdia, ou seja, não somente os atendimentos feitos pelos SUS são questionados pelas Operadoras, mas também o quanto o SUS pretender ressarcir.

Os interesses são nítidos: de um lado, a iniciativa privada fazendo o que saber fazer: ganhar dinheiro. De outro, está o Estado a representar o interesse de milhões de brasileiros, fazendo o que tem feito historicamente: gastando mais do que pode e vendo seus recursos sendo geridos de forma ineficiente, como se o erário fosse terra de ninguém.

Pergunta-se: qual a saída para a Saúde?

* Sandra Franco é consultora jurídica especializada em direito médico e da saúde, é presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), conselheira no Conselho Municipal de Saúde (COMUS) de São José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, MBA Executivo em Saúde e doutoranda em Saúde Pública.

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