A responsabilidade do médico pela omissão de socorro

Sandra Franco*

Segundo o dicionário Houaiss, o termo omissão apresenta como um de seus significados não fazer algo que moral ou juridicamente se deveria fazer, resultando (ou podendo resultar) prejuízo para terceiros ou para a sociedade. No Direito, a omissão é um ilícito que traz a penalização como consequência, na esfera cível, penal e administrativa.

Todos têm um dever de assistência e solidariedade para com o próximo, motivo pelo qual, ao não socorrer alguém, pratica-se o delito de omissão de socorro (Código Penal, art. 135).

Para determinado grupo de pessoas, contudo, há um dever legal ou contratual de cuidado, proteção ou vigilância. Caso não se adotem medidas para impedir o resultado, não responderão pelo delito de omissão de socorro, mas sim pelo resultado. Nesse sentido, se uma criança está se afogando e um transeunte não a ajuda, praticará o crime de omissão de socorro. Se for seu pai, um policial ou um bombeiro, um crime de lesão corporal; ou, em caso de morte, um homicídio (doloso ou culposo, conforme caso concreto).

Portanto, ao assumir um plantão, por exemplo, o médico tem a obrigação de adotar medidas em prol do paciente, ainda que discorde do atendimento anterior de seu colega, sob pena de sua responsabilização. Caso o médico tenha à frente de sua clínica uma pessoa que foi atropelada e precisa de assistência, surge este dever de o profissional agir. Se nada faz por entender que a obrigação do atendimento seria do serviço público de emergência, poderá ser responsabilizado pelo resultado morte ou lesão corporal.

Um caso recente trouxe à tona uma discussão que implica em possível responsabilização cível, criminal e ética do profissional médico. A médica Haydee Marques da Silva foi acusada por não prestar assistência a um menino de um ano e seis meses, após atender a um chamado, já estando frente a um condomínio, por alegar que não atendia criança, que já havia uma enfermeira no local e que não atende criança.

A médica não viu o paciente, não o examinou e, talvez, com sua experiência profissional, pudesse ter resolvido rapidamente o caso que se tratava (soube-se depois) de uma broncoaspiração. Ou, por não ser pediatra ou especialista, poderia ter tomado os cuidados necessários para que tal criança chegasse estável ao pronto atendimento de um hospital. Ou talvez a médica tivesse examinado o paciente e ele logo fosse a óbito também.

O resultado para esse paciente poderia ser o mesmo – entretanto, como saber?

Não se pode julgar previamente a profissional. No entanto, os fatos apresentados pela mídia, se verdadeiros, causam certa perplexidade. Imprescindível será ouvir as partes e se conhecer as razões que levaram a médica a sequer ver o paciente.

O Ministério da Saúde claramente dispõe, pela Portaria nº 354/14, sobre a definição de emergência como a “constatação médica de condições de agravo a saúde que impliquem sofrimento intenso ou risco iminente de morte, exigindo, portanto, tratamento médico imediato”.

Quanto à urgência, é a de “ocorrência imprevista de agravo a saúde como ou sem risco potencial a vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata”.

Como saberá o profissional de saúde se o caso concreto traz ou não o risco de morte, senão examinando o paciente?

O Código de Ética Médica apresenta as diretrizes para um médico exercer sua profissão e propõe a penalização daqueles que não seguem seus princípios. Nessa seara da obrigação de atender, encontram-se alguns preceitos, como “deixar de atender paciente que procure seus cuidados profissionais em casos de urgência ou emergência, quando não haja outro médico ou serviço médico em condições de fazê-lo” (art. 33).

Esse tema da omissão aparece em repetidos artigos, no Capítulo que versa sobre a “Relação com Pacientes e familiares”, tais como os artigos 7º, 8º e 9º do Capítulo da “Responsabilidade do profissional”, os quais deixam expresso ser falta ética o médico, em qualquer circunstância, deixar de atender o paciente em casos de urgência ou emergência ou deixar plantão sem que haja outro profissional para substituí-lo.

Interessante lembrar que, há pouco tempo, foi incluído no Código Penal o art. 135-A, criado pelo Legislativo e sancionado pela presidente Dilma, a partir de um evento que envolveu o secretário de Recursos Humanos do governo federal, Duvanier Pereira, que teria passado por três hospitais sem que houvesse sido atendido. Passou-se a considerar omissão de socorro a exigência de qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial. O que, embora saia da alçada da responsabilidade do médico, poderia trazer a ele sequelas caso a instituição tivesse essa política e ele não agisse em prol do paciente.

No entanto, muitos pacientes em estado grave, ainda que atendidos, deixam de ter o tratamento de que precisam, sem que se possa responsabilizar o médico, que se vê em uma situação de escolha entre pacientes, em razão de problemas relacionados à estrutura, falta de leitos na UTI, falta de equipamentos e falta de especialistas.

Nessa lógica, a União, o Estado e os Municípios seriam civilmente responsáveis por várias omissões de socorro, ao não cumprirem sua obrigação constitucional de oferecer uma estrutura de saúde digna. Por exemplo, a omissão de socorro por falta de vagas na UTI ocorre diariamente, em silêncio.

Alguns casos apresentados pela mídia chamaram atenção da sociedade. Em 2016, o Ministério Público Federal informou que um levantamento realizado em Bauru indicava que 580 mortes teriam ocorrido por falta de vagas no SUS, entre janeiro de 2009 e junho de 2013. Os pacientes deram entrada no Pronto-Socorro Central e acabaram morrendo pela falta de remoção para leitos ou mesmo por não serem atendidos a tempo. Para o MPF, que instaurou inquérito civil para apurar responsabilidade, ocorreram crimes de homicídio culposo, omissão de socorro e maus-tratos por parte do poder público contra os pacientes do SUS. A mesma situação já foi denunciada em Goiânia, no Mato Grosso e outras localidades.

Se considerados os constantes desvios de verbas ocorridos na área de saúde, será possível concluir que muitos políticos, gestores e fornecedores do SUS também deveriam ser responsabilizados pela ausência de cuidados aos pacientes e pela omissão de socorro. Não é necessário apontar que a falta de leitos está relacionada à ausência de recursos e da má administração do dinheiro público.

Ou seja, trata-se de um problema sistêmico e não apenas de uma médica isoladamente. Assim, cabe a todos nesse momento a reflexão a respeito do cenário que envolve a omissão de socorro. Não se pode deixar de punir o agente deste ato criminoso, qualquer que seja ele, quando o bem maior garantido pela Constituição é posto em risco: a vida.

*Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde, presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São José dos Campos (SP), membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e Doutoranda em Saúde Pública.

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