A insustentável leveza da relação Médico X Cooperativa

Recentemente, por decisão unânime da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, a cláusula de um estatuto social de certa Cooperativa que apresentava o dever de exclusividade a médicos cooperados foi considerada inválida.

Em síntese, a discussão na instância superior deu-se após decisão em 1ª instância do Tribunal Regional Federal da 4ª Região no sentido de ser lícita a cláusula de exclusividade estabelecida pela cooperativa, a fim de que os cooperados não prestassem serviços médicos a outras operadoras de plano ou assistência à saúde, uma vez que o cooperado é sócio e não iria concorrer com ele mesmo. Se o assunto precisou da interpretação dos membros do STJ, foi em razão da existência de argumentos sólidos que sustentaram entendimentos diversos: quer pela licitude, quer pela ilicitude.

Prevaleceu o entendimento do ministro Humberto Martins, relator do recurso ajuizado pelo Conselho Administrativo de Desenvolvimento Econômico (CADE) contra decisão do TRF. A tese central é de que o § 4º do artigo 29 da Lei no. 5.764/71, que instituiu o regime jurídico das cooperativas, não se aplica aos profissionais liberais, excluindo, portanto, os médicos cooperados.

Segundo ele, o artigo 18, inciso III, da Lei no 9.656/98 que dispõe sobre os planos de assistência à saúde veda às operadoras, independentemente de sua natureza jurídica constitutiva, impor contratos de exclusividade ou de restrição à atividade profissional. Os médicos cooperados, portanto, podem prestar serviços a outras operadoras de plano ou assistência à saúde, sem qualquer sanção por parte da Cooperativa.

Além deste, outros questionamentos surgem da prática da Medicina em regime de cooperativas, uma vez que a redação dos Estatutos das Cooperativas apresenta preponderantemente o conceito da auto-aplicável proteção econômica e do mercado de trabalho. Neste sentido, resta espaço para a discricionariedade dos grupos administradores. A ausência de regras claras, por exemplo, dos serviços que serão credenciados tem-se mostrado um buraco negro.

Regra geral é a do credenciamento de serviços de médicos cooperados (sócios de Clínicas, Laboratórios ou Hospitais) e de propriedade de não cooperados – mas, a escolha do serviço é da Diretoria de Administração ou de departamentos correlatos. Assim, muitos médicos cooperados reclamam perante suas respectivas diretorias no sentido de que seus estabelecimentos sequer são considerados para o credenciamento, mesmo que demonstrado formalmente o interesse e provada a existência das mesmas condições estruturais com equipamentos e recursos humanos compatíveis ao serviço do outro credenciado. Como o paciente usuário é aquele para quem o médico precisa dar informações, alguns se vêem em uma “saia justa” ao ter que pedir que seu paciente se submeta a um procedimento cirúrgico em outro estabelecimento credenciado, ainda que ele (médico cooperado) tenha o mesmo serviço oferecido e credenciado por outras operadoras.

Essa problemática já tem sido submetida ao Poder Judiciário, com entendimento de que deva ser mantida uma concorrência transparente, com procedimentos claros a todos os interessados de forma a salvaguardar os interesses dos cooperados – em prol de benefícios ao usuário paciente – mas também permitir aos não cooperados um mercado de trabalho.

A política de interesses particulares, em certos casos, tem dado azo a sua existência e precisa ser combatida pelos cooperados para que não se perca o escopo principal do cooperativismo em detrimento de favores pessoais e interesses individuais não declarados.

Como princípio norteador das atividades da cooperativa está sua submissão à Constituição Federal de 1988, ao tratar do seu regime diferenciado, não excepcionou as cooperativas da observância do princípio da livre concorrência estabelecido pelo inciso IV do art. 170.

Deve-se almejar em um sistema de cooperativa dos profissionais da saúde a convivência harmônica do exercício da Medicina – segundo os princípios éticos que norteiam essa atividade – e os interesses econômicos – que não devem se sobrepor à ética médica.

Nesse sentido, o Conselho Federal de Medicina não vê como ética a limitação do número de consultas e ou exames por Cooperativas. Da mesma forma, a jurisprudência é farta em exemplos com decisões consonantes ao direito de o interesse do paciente prevalecer e de haver o amparo do Código de Defesa do Consumidor para os usuários/consumidores dos planos de saúde e aqui se inclui os oferecidos pelas cooperativas médicas.

A situação de o profissional cooperado ser ao mesmo tempo “dono” e “funcionário” não impede de que seja responsável pelos atos de seus colegas cooperados:

“Quem se compromete a prestar assistência médica por meio de profissionais que indica, é responsável pelos serviços que estes prestam.” (RECURSO ESPECIAL: 1997/0044326, REsp 138.059/MG, Terceira Turma Relator: Ministro Ari Parglender; data do julgamento: 13/03/2001, DJ: 11.06.2001).

A contrario sensu, o médico cooperado sofre receio de um “descooperamento” (suspensão ou exclusão do quadro de cooperados), quando contraria o objetivo econômico da Cooperativa. do cooperado – mesmo que guiado por uma conduta lícita, ética e recomendável pela boa praxis médica.

Na abordagem da “insustentável (mas necessária) leveza” da relação Médico X Cooperativas, imprescindível que se analise uma decisão exarada pelo Poder Judiciário no que se refere à solidariedade das Cooperativas, portanto entre os cooperados, na esfera da responsabilidade civil profissional. Cita-se uma Ementa, a título ilustrativo:

“A Cooperativa que mantém plano de assistência à saúde é parte legitimada passivamente para ação indenizatória movida por associada em face de erro originário de tratamento pós-cirúrgico realizado com médico cooperativado.” (REsp nº309.760 – RJ; RECURSO ESPECIAL 2001/0029368-9, Quarta Turma,, data do julgamento: 06.11.2001, DJ: 01.07.2002).

Por fim, também já se manifestou o Judiciário sobre a negativa de operadoras, planos de saúde e cooperativas, em oferecer ao médico material cirúrgico requerido:

“Plano de saúde. Consumidor. Hospital que pretende a cobrança do paciente de material utilizado em cirurgia autorizada pelo plano de saúde. Material utilizado pelo médico diferente daquele autorizado pelo plano de saúde. Cabe ao médico durante a realização da cirurgia decidir qual é o material que vai ser utilizado. Impossibilidade do plano de saúde estabelecer qual o material a ser utilizado. Possibilidade do hospital cobrar diretamente do plano de saúde o valor do material utilizado, até mesmo por que a cirurgia realizada no apelado atendia as necessidades da patologia que lhe acometia, na forma que foi autorizada pelo plano de saúde, incluindo os materiais necessários a realização da cirurgia (…)”.

 

Não se olvida da importância das Cooperativas no modelo de saúde adotado no Brasil. Trata-se de um sistema misto: ao mesmo tempo que determina ser a saúde um direito de todos e dever do estado, deixa claro que a iniciativa privada poderá atuar na área da saúde.

Falta, porém, encontrar o equilíbrio da relação serviços de saúde x poder econômico.

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