Aborto: o dedo na ferida

Em qualquer país, mesmo aqueles com pensamento mais flexível, o aborto é certeza de polêmica. A discussão sobre a moral e a lei envolvidos na permissão ou proibição traz alguns pensamentos inconciliáveis. No entanto, para respaldar o exposto no anteprojeto da reforma do Código Penal, o Conselho Federal de Medicina (CFM) expõe seu parecer de forma objetiva a toda sociedade, com fundamentação que em aspectos sociais, éticos e epidemiológicos, em um tripé coerente ao exercício da medicina.

A proposta defendida pelo CFM apresenta essencialmente a ampliação de excludentes de culpabilidade, quando houver interrupção de gravidez quando se estiver diante das seguintes situações: a) quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”; b) se “a gravidez resultar de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”; c) se for “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”; e d) se “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação. Essa última possibilidade que implica em a mulher não precisar justificar sua opção é de longe a mais ousada.

Todavia, chama atenção a redação dada pelos conselheiros no sentido de que não somente o risco à vida da gestante autorizaria o aborto; mas também o risco à saúde, um conceito mais amplo e subjetivo.

Por evidente, em se tratando de um Estado Democrático de Direito, as opiniões divergentes já começaram a retumbar fortemente na mídia. É inconteste que esse posicionamento do órgão é corajoso, pois defende a dignidade da mulher, em especial, pelos fartos casos de abortos clandestinos, esterilidade pela perda do útero, traumas psicológicos irreversíveis por condições degradantes dos locais e a morte de muitas mulheres.

Segundo os especialistas, a curetagem é o terceiro procedimento obstétrico mais praticado no país, não se sabe dizer os números dos abortos espontâneos e daqueles provocados. Quase um milhão de mulheres foram internadas no SUS, entre 2007 e 2012, como consequência da prática de abortos, segundo estudos realizados pela Universidade de Brasília e o Instituto ANIS – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

Também não se discute que tal parecer traz de positivo o direito de a mulher utilizar-se do sistema de saúde público para interromper a gravidez. As mulheres desprovidas de recursos financeiros teriam o direito de dispor de uma gravidez indesejada (seja por problema na saúde do feto, seja pelo seu direito ao planejamento familiar), visto que as mulheres que possuem recursos financeiros têm acesso a procedimentos abortivos “mais sofisticados”, ainda que ilícitos. Essa é uma verdade incômoda, mas que deve ser confrontada pelos opositores à ampliação dos excludentes de ilicitude. Trata-se de uma aplicação do princípio de igualdade, ao menos de oportunidades de exercício de um direito.

Vale ressaltar que hoje não só as mulheres, mas também os médicos estão praticando o crime, salvo se estiver presente uma das condições atuais em que a lei permite o aborto: quando a mulher for vítima de violência sexual, se houver risco de morte eminente para a mãe ou se o feto for anencefálo.

Sob o aspecto da saúde e políticas públicas, não se poderá abandonar o conceito da prevenção e educação, quando possível. Na maioria das vezes a opção pelo aborto decorre da falta de planejamento da gravidez associada a fatores sociais como ignorância, planejamento familiar, escassez de recursos e grande número de filhos.

Para alguns o Direito Constitucional e natural à vida do feto precisa ser respeitado. E o direito a autonomia da mulher? Qual deve ter mais peso? Vê-se que nenhum direito é absoluto, portanto se o feto tem o direito de nascer vivo também teria o direito a ter uma vida digna, a qual, em tese, é afastada quando diante de uma gravidez indesejada.
Outro aspecto científico e importante para se entender os limites do Direito reside em não haver um consenso objetivo acerca do momento em que surge a vida: se dá fecundação, da nidação, do bater do coração, do estado do feto, da formação do sistema nervoso central, da capacidade de ser consciente de si próprio, do nascimento, ou do nascimento com respiração.

O posicionamento do CFM e o apoio de todos os Conselhos Regionais de Medicina possibilita maior segurança jurídica aos profissionais da saúde no exercício de suas atividades, uma vez que os envolvidos em um aborto (à exceção dos permitidos em lei) estão sujeitos aos crimes tipificados do Código Penal. O caminho a percorrer, se aprovado o texto do Código Penal é largo, até que os sistemas de saúde criem condições para o pleno exercício do direto pela mulher. É sabido que, mesmo nos casos hoje legalizados, alguns centros se recusam a atender as gestantes ou não possuem uma estrutura adequada com equipes multidisciplinares de saúde para acompanhar as mulheres e as famílias envolvidas.

Fato é que o aborto não deixará de ser crime e não é esse o mote do CFM. Pelo contrário, a ideia é dar mais segurança e contornos legais ao procedimento. Não é apenas uma questão legal ou religiosa, mas também social e pessoal. Obviamente o projeto deverá sofrer uma série de repreensões por parte de bancadas religiosas no Congresso Nacional. Porém, é importante não se desgarrar do cerne da questão que é a saúde da mulher. É neste quesito os médicos são uma fonte segura para auxiliar nos debates e na conclusão do projeto.

*Sandra Franco é sócia-diretora da Sfranco Consultoria Jurídica em Direito Médico e da Saúde, do Vale do Paraíba (SP), especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico- Hospitalar da OAB/SP e Presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde (ABDMS) – [email protected]

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